Penso que sempre fui ateu — ou algo do tipo.
Nunca me senti bem no seio da Igreja Católica. Até tentei participar de cerimônias em outras igrejas. Participei, também, de rituais de outras profissões.
Mas sempre restava o estranhamento.
Enfim, não estou me justificando — é apenas uma constatação.
Por se tratar de uma constatação, cabe a declaração: sempre me senti desconfortável diante de demonstrações de evocações (e invocações) divinas. Especialmente quando essas demonstrações requeriam minha manifestação — que, para ser honesta, haveria de repelir o gesto (e daí, eu me tornaria antipático, radical, grosseiro, intolerante, etc.).
O resumo da ópera, no entanto, é: sou ateu, ou agnóstico, ou secular, o que seja. Não tenho religião, nem pretendo:
— Simples, não é?
— Não, não é.
Já se guerreou e assassinou muito em nome de deus. De qualquer deus.
E isso é compreensível (mas não tolerável, eu penso): um deus é uma pessoa (assim afirmam os Testemunhas de Jeová) onipotente, exponencialmente mais poderosa do que as pessoas de carne e osso, e por isso, não tem que se preocupar com as suscetibilidades ‘humanas’.
Enfim, se inventou um deus justo, piedoso, implacável com os seus pares mas disposto a ‘perdoar’ os humanos, frágeis criaturas (sim, sua criação, seu invento) — misericordioso:
— Ótimo, não?
— Não!
— Mas as guerras e a intolerância acabaram!
— É mesmo?
(…)
Pois bem. As evocações me incomodam. As invocações também.
Mas só o que não falta são manifestações desse naipe.
Em nosso país, onde tudo tem de ser estabelecido em lei, está registrado na Constituição que:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
(…)
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
(…)
XX – ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;
(…)
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
Penso que, para mim, isso tudo significa: ter ou não uma religião é questão de foro íntimo; eu (qualquer um) não preciso me sentir constrangido de professar um credo; eu (qualquer) não tenho o direito de constranger alguém que não comungue de minha fé; e especialmente, eu (…) não posso me utilizar da estrutura estatal para potencializar a minha profissão de fé, o meu estilo de vida calcado nessa fé, os valores intrínsecos a essa fé, os rituais e hábitos dessa fé.
Dito isso, vamos ao caso: momento devocional é uma prática abusiva, ou um espaço disponibilizado à manifestação de qualquer?
Isso é o que argumentam os defensores dessa ‘instituição’ — é um espaço disponibilizado para manifestação espontânea.
Em tese, qualquer um pode se exprimir nesses momentos de convivência — de congregação.
Mas suponhamos que eu, ateu/agnóstico, decidisse manifestar minha profissão de não-fé aos meus ‘irmãos’: como seria?
Minha curiosidade não é tamanha. Admito: embora seja dotado de alguma curiosidade científica, não me proponho a tanto. Em primeiro lugar, porque prevejo reações acaloradas — principalmente daqueles que argumentam pelo caráter aberto e impessoal das manifestações habituais; em segundo, porque tenho comigo que manifestando minha profissão de não-fé eu me estaria nivelando com os entusiastas das profissões de fé.
Por outro lado, segundo a teoria do discurso, as palavras não são escolhidas ao acaso – elas têm significado real no discurso, e são utilizadas em função do seu significado.
Assim, quando se escolhe denominar esses momentos de aparente reflexão coletiva de ‘momentos devocionais‘ se decide que o caráter litúrgico, professional, é relevante.
Resumindo, são momentos dedicados a um culto (uma homenagem religiosa, uma adoração, etc., etc.).
Vislumbra-se mudança na estrutura?
Vá sonhando!
O Estado é laico, mas ‘Deus é brasileiro’.
Além do mais, nada mais eficiente para encerrar uma discussão do que atravessar uma citação bíblica — foi Deus que disse, vai encarar?
Então, o momento devocional vai continuar, e a porta lateral vai permanecer fechada.
Afinal, é mais relevante proporcionar a ‘oportunidade’ de os ‘pagãos’ terem acesso à ‘palavra de salvação’ do que respeitar os cidadãos seculares.
Direitos fundamentais? Isso é coisa para proteger trombadinha!